O que é Psicologia?
Não o objeto de estudo, seus métodos, seus objetivos, suas abordagens – mas ela, em si mesma, enquanto disciplina: o que é?
Entramos na faculdade ou abrimos um livro-texto introdutório e não obtemos de modo claro e abrangente a resposta.
O modo como o público em geral vê a psicologia, e muitas vezes os próprios psicólogos, é como uma área que faz afirmações de natureza motivacional e literária (Dostoievski era um psicólogo, dizem) ou, no máximo, reflexões psicoterapêuticas.
Em muitas siglas espalhadas pela internet e pela academia, com o "P" passam a impressão de se referir à Psicologia, mas, na verdade, dizem respeito à Psicoterapia e às vezes à dimensão prática de maneira geral, que é um conceito bem mais amplo que Psicologia clínica, mas ainda assim não sinônimo de Psicologia.
Ouço e leio com frequência perguntas do tipo, "a psicologia é ciência?", e depois de um tempo conversando percebo que, o interlocutor sabendo ou não, ele está se referindo apenas à ciência aplicada.
A psicologia é uma ciência e profissão, ensinam-nos em cursos, o que é o mais próximo do correto, mas ao se aprofundar nos detalhes do que significa essa caracterização, somos levados, por exemplo, a visões de que toda pesquisa deve ser de natureza aplicada com o pretexto da “relevância social", como se o conhecimento em si mesmo não fosse importante; e o curso é tão focado em matérias profissionalizantes (mesmo que o tema geral e a ementa, em princípio, não o sejam) ou instrumentos utilizados nessa dimensão, e os alunos são muitas vezes intelectualmente sonolentos, que a psicologia se torna apenas profissão.
Essas são posições absurdas e decorrem do desconhecimento histórico e intelectual do lugar da psicologia na ciência. Em uma situação assim, a Psicologia torna-se uma sinédoque – toma-se a parte pelo todo. E, claro, tudo que não é essa parte (a qual normalmente se refere à profissão ou ao aspecto prático) perde valor até atingir a total irrelevância. Algumas subdimensões, como a investigação teórica ou a busca em si mesma de conhecimento empírico (mesmo que não haja aplicação prevista) são vistas respectivamente como mera especulação e como uma total desnecessidade se não possui imediatamente aplicação profissional.
Em uma situação assim, a Psicologia torna-se uma sinédoque – toma-se a parte pelo todo. E, claro, tudo que não é essa parte (a qual normalmente se refere à profissão ou ao aspecto prático) perde valor até atingir a total irrelevância. Algumas subdimensões, como a investigação teórica ou a busca em si mesma de conhecimento empírico (mesmo que não haja aplicação prevista) são vistas respectivamente como mera especulação e como uma total desnecessidade se não possui imediatamente aplicação profissional.
Três coisas que apenas parecem a mesma são vistas como uma: disciplina psicologia, abordagem psicológica e fenômeno psicológico. Quando se escolhe uma abordagem, ela se torna sinônimo da disciplina psicologia e já vem com uma conceituação pronta de fenômeno psicológico – esse é o caminho comum da maioria dos estudantes. Quando, porém, essa distinção não é percebida, surge o triste caso de quem estuda anos uma abordagem achando que estuda diretamente o fenômeno psicológico.
Outra consequência é o impedimento da distinção clara entre área de estudo e abordagem teórica. A neurociência é uma área de estudo, a neurociência cognitiva (cujo adjetivo, para ser justo, deveria ser trocado por "cognitivista") é uma abordagem dentro da primeira: se eu não sou um psicólogo cognitivista não tem por que, por exemplo, eu falar em engramas, processamento de informação etc., mas é muito comum outras abordagens usarem essa linguagem pressupondo que a neurociência cognitiva, por achar que é uma área de estudo e não uma abordagem, descreve fatos ateóricos.
Em uma balbúrdia como essa, o estudante, e até o psicólogo formado, perde capacidade de avaliação e julgamento crítico, pois todos os parâmetros a partir dos quais se possa distinguir o bom do ruim, o aprimorável do irremediável, o útil do inefetivo, o verdadeiro do falso – todos eles, em suma, perdem-se, o que nos tira a autonomia intelectual e profissional.
Depois desse preâmbulo de confusões onipresentes, eu gostaria de apresentar de modo breve e geral uma boa heurística para nos situarmos diante desse campo absurdamente fragmentado e desconexo.
Imaginemos quatro dimensões e algumas inúmeras áreas, as primeiras em linha horizontais e as segundas verticais.
Dimensões: teórico-filosófica, conhecimento empírico, conhecimento aplicado, profissão.
Áreas: Psicologia clínica, Psicologia da Cognição, Psicologia Social, Psicologia Educacional, Psicologia Biológica, Psicologia Organizacional, Psicologia do Desenvolvimento etc.
Como ilustrado a seguir:
Baseado nisso, um psicólogo então pode fazer duas coisas dentro de alguma ou algumas áreas: pesquisa (de três tipos, teórico-filosófica, básica e aplicada) ou prestar algum serviço ao público em geral.
Em relação às dimensões, elas devem ser pensadas da seguinte maneira:
←) d. teórico-filosófica (←interpretação→) d. conhecimento empírico (←translação→) d. conhecimento aplicado (←formação→) profissão (→
As flechas '“soltas” inicial e a final indicam que a atividade das dimensões são circulares; nos elos entre as dimensões, as flechas apontam para os dois lados para indicar que é uma relação de influência mútua; é preciso pensar que a qualquer momento que selecionar uma dimensão para considerar, convém vê-la como que informa por todas as que vem “atrás”. Um breve adendo: do meu ponto de vista, penso que a dimensão teórico-filosófica é tão onipresente que é tarefa dela essas atividades de conectar e relacionar as dimensões entre si.
No que concerne às áreas, óbvio, não estão listadas de modo exaustivo, e pode haver subáreas e sub-subáreas; e, claro também, alguma das áreas estão mais unidas a algumas dimensões do que outras. Como exemplo escolhemos as duas primeiras, Psicologia Clínica e Cognitiva.
A Psicologia Clínica depende mais das dimensões de ciência aplicada e de profissão, o que não quer dizer que as outras duas não sejam importantes, muito pelo contrário, é através da ciência básica e teórica que a aplicada e a profissão se tornam mais coerentes e confiáveis.
E isso nos leva ao segundo exemplo, a Psicologia Cognitiva. Um primeiro comentário se faz necessário: a Psicologia Cognitiva é ou deveria ser uma área de estudo e não uma abordagem, do mesmo modo que a psicologia do desenvolvimento não é uma abordagem, mas as duas estão imiscuídas confusa mente; baseado nesse erro, alguns cognitivistas acreditam que a cognição não é estudada por outras abordagens. Voltando ao assunto central, a Psicologia Cognitiva está mais relacionada com as duas primeiras dimensões do que com as duas últimas, fato que, por exemplo, impede que a TCC (clássica), que é uma terapia, e não uma teoria, faça qualquer afirmação sobre o funcionamento humano. Mas como no primeiro exemplo, e em todas as subáreas, na verdade, ela não só pode como deve contribuir com as dimensões aplicadas e profissionais.
Em síntese, todas as áreas devem estar relacionadas com todas as dimensões – o que não é o caso atualmente. A Psicologia deveria ser, portanto, uma ciência e uma profissão que abrangessem todas as subáreas possíveis sem enfatizar uma área ou dimensão mais do que outras (e, claro, dentro de uma estrutura teórica coerente). É a isso que a Psicologia deve aspirar.
Essa tabela é uma heurística bastante útil não só para organizar e sistematizar a psicologia como um todo, mas também julgar e avaliar as inúmeras abordagens, pô-las em seus devidos lugares e, se preciso, excluí-las completamente.
Por exemplo, quando alguém pergunta, “qual é sua abordagem?”, e responde-se: “TCC” (com frequência, sobretudo no brasil a TCC beckiana). Mas em que sentido a TCC é uma abordagem do mesmo modo que a Análise do Comportamento?
Em nenhum sentido, na verdade. A TCC é sobretudo uma terapia (subárea) dentro das dimensões ciência aplicada e profissão, enquanto a AC, por ser uma teoria abrangente e não uma terapia, se estende pela tabela toda.
Pelo teor do que foi dito acima, parece que se critica a psicologia em seu aspecto aplicado e profissional. Essa seria uma conclusão errada. Ela parece justa porque atualmente o que se sobressai são exatamente essas duas dimensões. Mas eu não advogo pela diminuição de ênfase nelas, mas, isso sim, pela ênfase igual nas duas outras dimensões, sob pena de uma fragmentação absurda, como as Ciências Cognitivas e 4E tornando-se departamentos separados e lidando sobretudo com as dimensões teórico-filosóficas e pesquisa básica, e os psicólogos tendo de ir até eles para obter conhecimento de ponta.
Poderia me prolongar, pois muitas coisas ficaram para ser desenvolvidas (e.g. o que se entende por teoria, por pesquisa básica etc., qual a diferença entre teoria e filosofia, como avaliar uma abordagem mesmo ela abrangendo a tabela toda, qual a relação entre abordagem teórica e psicologia enquanto disciplina geral etc.) mas para uma postagem de internet está bom demais.
Termino com um conselho que eu mesmo sigo: para uma boa compreensão do que é a Psicologia e uma atuação profissional sólida, convém estudar e refletir o que é a psicologia enquanto disciplina, qual seu objeto de estudo e os melhores métodos de estuda-lo e o que fazer diante da variabilidade de abordagens teóricas.